JUSFILOSOFIA: REFLEXÃO OU O “PORQUÊ” DA NORMA - ALÉM DA SUBSUNÇÃO FRIA E UNILATERAL DA LEI
1 INTRODUÇÃO
O postulado da presunção de inocência encontra-se expressamente previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. De acordo com o texto constitucional, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988). Isso significa que, no âmbito do processo penal, a declaração formal de culpa e a consequente execução da pena somente poderão ocorrer após a formação da coisa julgada em relação à decisão condenatória proferida. Esse princípio, fundamental para a consolidação de um Estado Democrático de Direito, não foi uma constante nos ordenamentos jurídicos ocidentais, tendo sido fruto de um longo e doloroso processo histórico, marcado por perdas humanas e intenso sofrimento social. Contudo, no contexto brasileiro contemporâneo, observa-se que diversos operadores do Direito, influenciados por uma lógica punitiva de matriz neoliberal, têm defendido a flexibilização desse postulado. O argumento frequentemente apresentado é o de combater uma suposta impunidade de indivíduos pertencentes às elites político-econômicas. Nesse cenário, não são poucos os que sustentam a possibilidade de afastamento da aplicação do dispositivo constitucional em nome de propósitos que consideram legítimos. Todavia, essa aparente boa intenção – punir os poderosos por eventuais crimes – suscita importantes questionamentos de ordem técnica e de prudência jurídica, sintetizados na clássica provocação: quem nos protegerá da bondade dos bons? E, ainda, quem seria, em última análise, o público-alvo privilegiado dessa lógica de punição exemplar? A partir dessas inquietações, torna-se imprescindível resgatar uma reflexão jusfilosófica sobre o papel do processo penal enquanto instrumento de contenção do arbítrio estatal. A urgência em revisitar e refletir criticamente sobre noções fundamentais como justiça material, dignidade da pessoa humana e interpretação jurídica orientada por garantias constitucionais tornou-se inadiável. A postergação desse debate implica o risco concreto de transformar o Direito Penal em um simples instrumento de validação da violência promovida pelas instituições estatais. O presente trabalho, portanto, pretende promover um debate crítico acerca da necessidade de uma jurisdição penal humanizada, que transcenda o positivismo normativista estrito e dialogue com os valores constitucionais fundantes da República. Com essas questões em mente, o presente texto pretende propor algumas reflexões que levem o leitor a pensar um processo penal menos óbvio e mais “fora da caixa”, ou seja, menos gratuitamente punitivo – ocupado em garantir o dito e abstrato “direito à segurança” –, mais limitador do poder estatal e comprometido com a segurança dos direitos. Em resumo, pleiteia-se um processo penal menos violador e mais validador das liberdades e garantias individuais.
2 OS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS E O PODER DE PUNIR
No âmbito do processo penal, a função do juiz consiste em garantir que todas as fases processuais transcorram em conformidade com os preceitos legais, assegurando, assim, a manutenção de um equilíbrio efetivo entre os meios empregados pela acusação e pela defesa. No entanto, sob uma perspectiva histórica, a existência de uma divisão clara entre as funções de acusação, defesa e julgamento imparcial nem sempre esteve assegurada na conformação dos modelos processuais. Foi apenas com o avanço dos sistemas processuais penais que tais conceitos passaram a integrar de forma mais consistente a dinâmica jurisdicional.Um marco relevante nesse percurso ocorreu em 1215, quando Inocêncio III convocou a liderança da Igreja Católica para o IV Concílio de Latrão, realizado em São João de Latrão. Esse evento sinalizou o início de um novo modelo processual, que passou a excluir os chamados juízos de Deus como forma de solução de litígios. Essa mudança foi posteriormente formalizada pela Bula de Gregório IX, promulgada em 1231, a qual estruturou os fundamentos técnicos desse novo modelo processual, sendo complementada, em 1252, pela Bula de Inocêncio IV (COUTINHO, 2009). Dessa maneira, consolidou-se o Sistema Inquisitivo, caracterizado pela retirada das partes do protagonismo na condução da ação penal, conferindo ao juiz não apenas a responsabilidade de julgar, mas também a incumbência de dirigir e promover, por iniciativa própria, os atos relacionados à fase de instrução processual. Caracterizado por sua natureza essencialmente sigilosa, esse modelo não impunha ao inquisidor qualquer ônus de responsabilização, fazendo com que todo o peso do processo recaísse exclusivamente sobre o acusado, frequentemente tratado como um condenado antecipadamente. Na lição de Nilo Batista (2022, p. 71), Concentrar na pessoa do Inquisidor as funções de investigar (valendo-se frequentemente da tortura), de acusar e de julgar, num procedimento totalmente sigiloso, do qual está banida a litiscontestatio, um réu que não pode saber jamais quem testemunhou contra ele e cujo advogado (designado pelo Inquisidor) deve aconselhá-lo a confessar (desaparecendo do caso após a confissão, esgotada que foi sua tarefa), tudo isso configura sem dúvida um modelo procedimental autoritário e truculento, hoje em aberto conflito com elementares garantias estampadas nas Constituições e leis de países da nossa tradição jurídica romano-germânica [...]. No cenário do processo inquisitório, o réu carregava a pecha de pecador, alguém que guardava uma verdade a ser extraída a qualquer custo, até mesmo pela tortura. Essa lógica, que permitia a manipulação das premissas jurídicas e dos fatos, sempre encontrou terreno fértil em regimes autoritários e ditatoriais. Por outro lado, o Sistema Acusatório se firma na separação clara entre quem acusa e quem julga. A acusação não é imposta, mas deliberada, podendo ser promovida tanto pela vítima quanto por qualquer cidadão. Nessa dinâmica, a defesa goza de autonomia e há um equilíbrio fundamental entre as partes, garantindo o contraditório. Ademais, a transparência dos atos processuais, a viabilidade de substituição do magistrado, a intervenção social no curso do processo e a preservação da liberdade do réu configuram garantias essenciais que alicerçam tal estrutura procedimental. Sua origem remonta à Inglaterra pós-invasão normanda, sob Guilherme, o Conquistador. Contudo, foi só durante o reinado de Henrique II, entre 1154 e 1189, que esse sistema ganhou forma mais consistente. Henrique buscava unificar a Grã-Bretanha, missão que cumpriu em 1171. Para tanto, instituiu um novo aparato judicial que centralizava as decisões do reino na jurisdição de Westminster. Dessa forma, aqueles que se sentissem lesados podiam apresentar petições diretamente ao monarca, as quais eram, em regra, analisadas pelo Lord Chancellor. Sob a autoridade real, eram emitidas determinações escritas (writs) direcionadas aos agentes locais da Coroa (sheriffs), incumbindo-lhes a tarefa de intimar oficialmente o acusado a comparecer e apresentar sua defesa. No entanto, conforme Coutinho (2009, p. 106), “tal modo de agir (forms of action) logo abarrotou a jurisdição real e, mesmo com a divisão do tribunal (Curia regia) em três instâncias, a situação permaneceu sem solução.” Diante desse contexto problemático, Henrique II instituiu, por meio de um novo writ denominado novel disseisin, o chamado Trial by Jury, durante o Concílio de Clarendon, em 1166. Tal modelo introduziu a figura de dois conselhos de jurados: o Grand Jury, composto por vinte e três cidadãos, e o Petty Jury, formado por doze integrantes. Ambos eram compostos por pessoas da comunidade onde o crime ocorrera, as quais possuíam conhecimento direto dos fatos e se comprometiam, sob juramento, a relatar a verdade (LOPES, 2011). Caso a acusação fosse aceita pelo lprimeiro grupo, o acusado seria submetido ao julgamento pelo segundo. Enquanto cabia ao júri a definição da matéria de fato e do direito material, as normas processuais permaneciam sob a competência do monarca. O representante da Coroa, por sua vez, restringia-se a garantir a ordem durante o ato processual, conferindo ao julgamento a configuração de um amplo e acirrado embate entre acusação e defesa (COUTINHO, 2009). João Mendes de Almeida Júnior (1911, p. 217), fazendo uma comparação entre os sistemas puros, analisa que o Sistema Acusatório, subordinado ao método sintético, presumia inocente o acusado, enquanto não houvesse prova definitiva do fato. Já o Inquisitório, adepto ao método analítico, ao admitir previamente a possibilidade do fato, pressupunha um culpado, coligindo os indícios e as provas a partir dessa perspectiva. Pode-se aduzir que, no caminhar do Sistema Inquisitório ao Sistema Acusatório, saiu-se de um paradigma de presunção de culpa ao da presunção da inocência do acusado no rito penal. No modelo anterior, predominava a presunção antecipada de culpa, recaindo unicamente sobre o acusado a obrigação de provar a improcedência da acusação que lhe era dirigida. Com a adoção do novo paradigma processual, essa incumbência probatória é deslocada para o Estado, na qualidade de parte acusadora. Dessa forma, o acusado passa a ser considerado inocente até que a acusação consiga demonstrar, de forma inequívoca e por meio de provas legalmente admitidas, a sua responsabilidade pelo crime imputado. Na dinâmica processual, cabe à acusação o papel de iniciar e conduzir a ação penal, assumindo a responsabilidade de comprovar os fatos que atribui ao réu. Por sua vez, ao acusado deve ser garantida a possibilidade de utilizar todos os meios legais para se defender das alegações que lhe são feitas. Para que o processo transcorra com regularidade e justiça, é fundamental respeitar rigorosamente o devido processo legal e o princípio basilar da presunção de inocência. A presença de diferentes sujeitos no processo, separados entre si e do próprio juiz, não apenas garante a imparcialidade do magistrado, mas também assegura ao acusado a oportunidade real de se defender, permitindo que ele confronte as acusações de maneira justa e equilibrada. Dessa maneira, afasta-se o modelo inquisitivo, no qual o réu era tratado como simples objeto, subordinado ao arbítrio da acusação e da aplicação da pena. Nessa perspectiva, Ferrajoli (2010) ressalta que o desenvolvimento justo do conflito processual depende da igualdade plena entre as partes envolvidas. Assim, a defesa deve possuir condições equivalentes às da acusação, detendo os mesmos instrumentos e prerrogativas para a condução do processo. Esse é o modelo compatível com o Estado de Direito, ou, nas palavras de Moreira (1988, p. 89), o “Estado que se justifica”, onde todos os poderes estão submetidos às normas legais. Nesse contexto, qualquer intervenção na esfera jurídica do indivíduo precisa estar fundamentada de maneira clara e transparente, especialmente no âmbito penal, que revela o aspecto mais severo do Leviatã, pois afeta diretamente o cidadão em sua integridade física, privando-o do bem mais essencial para uma existência digna: a liberdade.
3 PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO FERRAMENTA ANTIBARBÁRIE
Sabe-se que “o ovo da serpente” do poder punitivo, tal como o conhecemos, encontra-se no período histórico concernente à Inquisição. Mais do que isso, não é nenhuma novidade que a punição – formal ou informal – consolidada no decurso dos séculos tem por combustível primordial a vingança. Ao longo do tempo, especialmente no século XX, emergiram críticas sociológicas vigorosas acerca dessa irracionalidade estrutural que as teorias penais tradicionalmente procuraram ocultar. Contudo, essas críticas tendem a concluir que o poder punitivo funciona como um instrumento de opressão a serviço dos detentores do poder, o que gera demandas revolucionárias importantes, porém de caráter futurista e sem previsão concreta de realização. Tal perspectiva pode resultar numa lógica circular dentro do campo progressista, que evita ocupar esta trincheira - o direito e os espaços institucionais em geral - permanecendo à espera de um purismo transformador. Ao recusar reconhecer o direito, em suas diversas manifestações e contradições, não apenas como um espaço de violência e preservação do status quo, mas também como um campo de disputas por reconhecimento das camadas sociais minoritárias, deixam-se de propor medidas eficazes para resistir à máquina punitiva estatal no presente imediato. Quando o Direito é concebido apenas como um instrumento de violência e preservação das estruturas vigentes, sem reconhecer sua dimensão como espaço de disputas legítimas por reconhecimento das minorias sociais, deixam de ser elaboradas estratégias eficazes para enfrentar e conter a ação punitiva do Estado na contemporaneidade. Por conseguinte, para além do (importantíssimo) diagnóstico do problema capitalista-moderno de base, é preciso oferecer “táticas de contenção imediata dopoder punitivo em ação” (ZAFFARONI, 2021, p. 26). Nesta trajetória, a disputa ultrapassa o plano material, configurando-se também como uma luta simbólica e discursiva. É fundamental confrontar os signos e as interpretações para viabilizar mudanças concretas, tanto em prazos curtos quanto longos. Enquanto o processo penal se mantenha vigente, revela-se essencial que sua interpretação seja permanentemente revisitada e ressignificada, de modo a refletir os valores próprios de um regime democrático, tendo como pilar fundamental o princípio da presunção de inocência, a fim de garantir-lhe a maior efetividade possível. Nesse contexto, impõe-se reconhecer que a função primordial do processo penal não consiste na mera preservação da chamada segurança e ordem públicas, mas sobretudo na salvaguarda dos indivíduos contra perseguições arbitrárias e repressões injustas por parte do Estado, sobretudo considerando que a lógica inerente ao sistema penal tende, naturalmente, à punição em detrimento da proteção. Diante da evidente disparidade estrutural entre o Estado e o cidadão enquanto sujeito individual, revela-se imprescindível a garantia da igualdade de condições processuais, de modo a assegurar ao acusado uma defesa efetiva e equilibrada no âmbito do enfrentamento judicial. Sob essa perspectiva, Ada Pellegrini Grinover (1978) entende que o Código de Processo Penal constitui o estatuto de proteção dos inocentes, que nele encontram um escudo contra a arbitrariedade dos magistrados e a má-fé das partes adversas. A autora conclui que o processo penal “serve à liberdade jurídica dos réus (direito ao processo), talvez mais do que ao direito do autor (pretensão ao provimento jurisdicional condenatório)” (GRINOVER, 1978, p. 29). Assim, o processo penal, embora frequentemente concebido como o meio exclusivo para resolver conflitos criminais no âmbito público, transcende a mera função de perseguir o acusado. Ele se configura, sobretudo, como um mecanismo essencial para resguardar os direitos individuais daqueles que se veem submetidos à força do poder punitivo estatal. Nesse prisma, tem-se o princípio da presunção de inocência enquanto uma conquista histórica, colhida com muita luta, suor e sangue, não só pela via de inúmeros debates congruentes entre grandes juristas, como também, irracionalmente, aos custos de muitas vidas. Tal garantia é um marco civilizatório por demais basilar para ser flexibilizada, em qualquer circunstância. Nas palavras de Juarez Tavares (2018, p. 83), A interpretação da norma criminalizadora, em um Estado democrático, não deve ser orientada para obter uma afirmação de responsabilidade, mas sim para limitar o exercício do poder punitivo. Esse é o sentido da presunção de inocência, que, por estar positivado na ordem jurídica, não pode ser relativizado e deve ser tomado como verdadeiro postulado normativo, de atendimento obrigatório. Dadas as características impositivas do princípio da presunção de inocência, não pode ser ele flexibilizado por força de decisão judicial. Ademais, ao se relativizar a presunção de inocência, a liberdade individual passa a ser gerida por uma lógica econômica centrada majoritariamente na eficiência (CASARA, 2019). Já em 1957, Carnelutti (2009, p. 61) alertava que “o encargo do processo penal está [simplesmente] em saber se o imputado é inocente ou culpado”. Portanto, a finalidade do processo penal não é – e jamais deveria ser – a detenção prolongada em desrespeito aos princípios constitucionais mais fundamentais. Essa constatação, embora evidente, parece ainda exigir reafirmação diante da realidade atual. Sob o prisma do neoliberalismo, esse cenário tende a se agravar. No Estado neoliberal, observa-se uma íntima e excessiva aproximação entre o poder político e o econômico, que frequentemente opera sem freios. Consequentemente, direitos fundamentais, princípios do liberalismo e até mesmo a soberania popular são instrumentalizados ou mesmo ignorados quando conflitam com os interesses das elites econômicas. Assim, o papel das instituições do Sistema de Justiça sofre profunda transformação sob a influência dessa racionalidade, fazendo com que órgãos como o Poder Judiciário e o Ministério Público abandonem a centralidade na proteção dos direitos fundamentais para se converterem em aparatos que legitimam as demandas mercadológicas e reprimem aqueles considerados indesejáveis, especialmente os pobres e os críticos do projeto neoliberal (CASARA, 2020). Essa é uma catástrofe que necessita ser enfrentada e ter o freio de emergência imediatamente acionado, conforme reza a profética tese sobre a ideologia do progresso de Walter Benjamin (1987). Vidas são física e simbolicamente perdidas todos os dias. O sofrimento é lancinante e cotidiano. Não se pede a quem está sentindo dor que indefinidamente espere. Cabe ressaltar que a população prisional brasileira não é diversificada. Qualquer aumento da máquina encarceradora se reflete, primeira e diretamente, nas camadas mais vulneráveis da massa populacional, preponderantemente sobre pessoas negras e pobres, aprofundando o que Nilo Batista (2011, p. 113) chama de “efeitos sociais não declarados da pena” (estigmatização, controle do exército industrial de reserva, criação de bodes expiatórios). Essa realidade provoca impactos profundos em um país cuja história é marcada por sucessivos períodos autoritários intercalados por breves momentos de liberdade. Em um contexto ainda marcado pelas feridas coloniais e pelo legado escravista, permanece vigente a lógica de que as práticas repressivas se sofisticaram, adotando a prisão como mecanismo central de punição direcionada a grupos sociorraciais específicos (BORGES, 2020). Nesse sentido, Thiago Fabres de Carvalho (2014, p. 237) destaca que a completa desqualificação moral e jurídica de determinados segmentos sociais caracteriza as sociedades neoliberais periféricas, configurando-se no sistema penal uma atuação voltada para o que ele denomina “genocídio compulsivo do terror de Estado e da exceção permanente”. A essa lista preocupante deve-se acrescentar o papel central do superencarceramento na perpetuação das desigualdades sociais estruturais e na manutenção de um quadro inconstitucional dentro do sistema penal brasileiro. Conforme aponta Wacquant (2001), quanto maior é o aprisionamento das populações pobres, mais estas se convencem de que permanecerão em situação de pobreza por longo período, tornando-se assim alvos fáceis para as políticas que criminalizam a condição de vulnerabilidade econômica. Ademais, é fundamental reconhecer que essa criminalização da pobreza carrega uma dimensão racial evidente, uma vez que a população negra constitui o principal objeto das práticas repressivas das instituições encarregadas da justiça criminal, revelando que o sistema reproduz, em sua atuação cotidiana, a longa história de opressão racial no Brasil (GOMES, 2022). Portanto, o penalista se encontra em uma posição delicada, quase entre a cruz e a espada: ainda que integrado ao “aparelho peculiar” kafkiano que inflige sofrimento, deve agir para garantir que os procedimentos se desenvolvam com o mínimo possível de irracionalidade e perversidade. Em síntese, sua missão consiste em mitigar os danos. Com um olho no horizonte abolicionista revolucionário e outro no que dizem asregras do jogo liberal – o império da lei –, o advogado criminalista é o guardião da democracia no processo, na medida em que democracia não é regime para derramar sofrimento e morte no infausto culto de enjaulamento de almas e corpos. Democracia é viver a política, viver em comunidade. Democracia é compartilhar, no pequeno lapso humano existencial, aquilo que se é e o que se tem; é esculpimento de memória conjunta no encontro com o outro. Democracia é regime para viver e ser livre.
4 JUSTIÇA, LEI E CONSCIÊNCIA: POR UMA JURISDIÇÃO HUMANIZADA E JUSTA
A investigação histórica do Direito Penal evidencia que a norma jurídica jamais deve ser compreendida como um objetivo em si mesma, nem reduzida a um instrumento meramente punitivo, subordinado a um Estado guiado por instintos retaliatórios. Essa compreensão, embora ainda presente em certos discursos jurídicos de cunho mais tradicional, não resiste a uma leitura mais atenta das exigências que a contemporaneidade impõe aos operadores do Direito. Juízes, promotores e advogados, cada um a seu modo, são hoje convocados a reconhecer que o verdadeiro propósito da norma penal vai muito além da aplicação mecânica e descontextualizada de tipos previamente descritos. A missão que lhes cabe é a de promover a justiça material, com todos os ônus éticos e intelectuais que esse desafio impõe. Desconsiderar o propósito teleológico e os valores subjacentes à interpretação do direito significa manter vigente um modelo de jurisdição penal que não reflete as avançadas conquistas democráticas consagradas na Constituição de 1988. A mera observância da legalidade revela-se insuficiente; na ausência de um compromisso genuíno com a dignidade humana e a salvaguarda efetiva dos direitos fundamentais, a atividade jurisdicional pode degenerar em um formalismo meramente repressivo, carente de fundamentação ética e substância moral. É nesse sentido que a reflexão filosófica sobre o Direito assume papel central. Interpretar a norma é também interrogar-se sobre os valores que a sustentam, os fins que ela pretende alcançar e, sobretudo, os limites éticos que devem conter o poder punitivo estatal. Bobbio (1997), ao problematizar a função da ordem jurídica, foi incisivo ao afirmar que um Direito descolado dos ideais de justiça nada mais é do que um aparato técnico de controle social, carente de legitimidade e, mais grave ainda, perigoso em sua aplicação cega. O princípio do in dubio pro reo, a asseguração do contraditório, a presunção da inocência e a valorização da dignidade humana, conforme previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, transcendem meras formalidades processuais. Esses elementos configuram os alicerces essenciais de um Estado Democrático de Direito, cuja finalidade primordial consiste em resguardar o cidadão contra possíveis abusos e excessos do poder punitivo exercido pelo Estado. A adoção de uma leitura meramente literal e unilateral da lei, desprovida de um verdadeiro compromisso com a justiça, revelou-se, ao longo da história, responsável por decisões que hoje se destacam como exemplos emblemáticos de graves afrontas aos direitos humanos. Casos como a condenação de Sócrates, acusado de corromper a juventude ateniense; a crucificação de Jesus Cristo, motivada por razões políticas e religiosas; e a execução de Tiradentes, símbolo da repressão colonial, ilustram de forma contundente como ordenamentos jurídicos, mesmo respaldados por uma legalidade formal, podem culminar em decisões marcadamente injustas (CAPEZ, 2022). Diante desse histórico, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade assumem papel fundamental como parâmetros interpretativos indispensáveis para a contenção de excessos punitivos. Conforme leciona Alexy (2017), a proporcionalidade deve ser o filtro que impede que a aplicação da lei ultrapasse os limites éticos do aceitável, sobretudo quando o bem jurídico em jogo é a liberdade ou a própria vida do acusado. Ainda ganha maior relevância o alerta de que é preferível libertar um indivíduo culpado do que condenar alguém inocente. Essa máxima, presente no pensamento de renomados juristas como Blackstone e Beccaria, encontra reafirmação no ordenamento constitucional brasileiro, que, ao reconhecer a cidadania como pilar da República (art. 1º, II, da CF/88), impõe a necessidade de um sistema judiciário capaz de assegurar ao acusado um processo justo, equilibrado e pautado pela dignidade humana. O juiz não deve assumir a postura de “justiceiro” ou de mero “carimbador de leis cruéis”, mas, como alerta Zaffaroni (2013) atuar como verdadeiro garantidor de direitos, decidindo não apenas com base em uma ciência jurídica formal, mas também com base em uma consciência ética voltada à proteção da dignidade humana. A reflexão jusfilosófica convida, assim, à superação do positivismo estrito e à adoção de uma hermenêutica constitucional garantista, na qual a justiça se sobreponha à mera literalidade da lei, sempre que esta se mostrar injusta, desproporcional ou incompatível com os direitos fundamentais. Como ensina Streck (2015), o juiz deve ser o intérprete comprometido com a Constituição e com os direitos fundamentais, rejeitando qualquer postura reducionista ou automatizada no exercício da jurisdição penal. À luz dessas reflexões, torna-se evidente que a norma jurídica só alcança sua verdadeira finalidade social e humanitária quando está efetivamente a serviço do Direito, compreendido este como um conjunto de garantias fundamentais que protegem a dignidade e a liberdade do indivíduo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente texto buscou demonstrar que o processo penal, na forma como é atualmente concebido, transcende a simples função sancionatória do Estado sobre os indivíduos. Ele simboliza o paradigma liberal pós-revolucionário, que visa proteger as garantias e liberdades individuais frente à autoridade estatal. Ao longo da história, diversas arbitrariedades foram cometidas até a consolidação do Sistema Acusatório, caracterizado pela distinção clara entre as partes no litígio e sua, ao menos teórica, separação do Estado-juiz. Esse modelo representou uma ruptura significativa com o sistema inquisitivo, que se fundamentava na presunção de culpabilidade, inaugurando, assim, o reconhecimento essencial da inocência do acusado no âmbito penal, um avanço histórico determinante para a consolidação do Estado Democrático de Direito. Embora possa causar certo espanto, é fundamental resgatar e reafirmar os princípios iluministas do século XVIII que embasam o due process of law, caracterizado pela racionalidade, pela previsibilidade e pela necessidade de fundamentação das decisões judiciais. Desde o advento das revoluções liberais, o Estado, em regra, abriu mão do poder de intervir na vida privada dos indivíduos, reservando tal atuação apenas para situações excepcionais, estritamente delimitadas e justificadas pelo ordenamento jurídico. É preocupante que princípios tão fundamentais ainda não estejam plenamente incorporados e que tal debate permaneça vigente no âmbito jurídico-acadêmico. É imprescindível refletir sobre um modelo de processo penal que se distancie das abordagens convencionais e se desassocie da lógica punitivista exacerbada, característica de regimes autoritários e marcados por práticas político-policiárias opressivas. É necessário um rito jurisdicional que não se confunda com a figura do soberano, um processo penal que não se encante com o sadismo e a disposição sobre vidas e corpos e que seja comprometido, em primeiro lugar, com a autodeterminação individual. Considerando as análises apresentadas, pode-se afirmar que a função contramajoritária do Poder Judiciário, especialmente no campo penal, deve atuar como um freio essencial frente aos excessos punitivos que, em certas ocasiões, são legitimados sob a justificativa do interesse coletivo. A efetivação dos direitos fundamentais, notadamente a presunção de inocência e o devido processo legal, não deve ser encarada como um obstáculo à justiça, mas sim como sua manifestação mais autêntica e legítima. A construção de uma cultura jurídica pautada no garantismo exige, portanto, um posicionamento crítico e ético por parte dos intérpretes da lei, cientes de que o Direito Penal, enquanto última ratio, deve ser mantido de forma excepcional, restrita e profundamente humanizada. É imprescindível, com a máxima urgência, repensar um processo penal que se mostre menos orientado pela lógica do poder e mais comprometido com a promoção da uma ruptura significativa com o sistema inquisitivo, que se fundamentava na presunção de culpabilidade, inaugurando, assim, o reconhecimento essencial da inocência do acusado no âmbito penal, um avanço histórico determinante para a consolidação do Estado Democrático de Direito. Embora possa causar certo espanto, é fundamental resgatar e reafirmar os princípios iluministas do século XVIII que embasam o due process of law, caracterizado pela racionalidade, pela previsibilidade e pela necessidade de fundamentação das decisões judiciais. Desde o advento das revoluções liberais, o Estado, em regra, abriu mão do poder de intervir na vida privada dos indivíduos, reservando tal atuação apenas para situações excepcionais, estritamente delimitadas e justificadas pelo ordenamento jurídico. É preocupante que princípios tão fundamentais ainda não estejam plenamente incorporados e que tal debate permaneça vigente no âmbito jurídico-acadêmico. É imprescindível refletir sobre um modelo de processo penal que se distancie das abordagens convencionais e se desassocie da lógica punitivista exacerbada, característica de regimes autoritários e marcados por práticas político-policiárias opressivas. É necessário um rito jurisdicional que não se confunda com a figura do soberano, um processo penal que não se encante com o sadismo e a disposição sobre vidas e corpos e que seja comprometido, em primeiro lugar, com a autodeterminação individual. Considerando as análises apresentadas, pode-se afirmar que a função contramajoritária do Poder Judiciário, especialmente no campo penal, deve atuar como um freio essencial frente aos excessos punitivos que, em certas ocasiões, são legitimados sob a justificativa do interesse coletivo. A efetivação dos direitos fundamentais, notadamente a presunção de inocência e o devido processo legal, não deve ser encarada como um obstáculo à justiça, mas sim como sua manifestação mais autêntica e legítima. A construção de uma cultura jurídica pautada no garantismo exige, portanto, um posicionamento crítico e ético por parte dos intérpretes da lei, cientes de que o Direito Penal, enquanto última ratio, deve ser mantido de forma excepcional, restrita e profundamente humanizada. É imprescindível, com a máxima urgência, repensar um processo penal que se mostre menos orientado pela lógica do poder e mais comprometido com a promoção da uma ruptura significativa com o sistema inquisitivo, que se fundamentava na presunção de culpabilidade, inaugurando, assim, o reconhecimento essencial da inocência do acusado no âmbito penal, um avanço histórico determinante para a consolidação do Estado Democrático de Direito. Embora possa causar certo espanto, é fundamental resgatar e reafirmar os princípios iluministas do século XVIII que embasam o due process of law, caracterizado pela racionalidade, pela previsibilidade e pela necessidade de fundamentação das decisões judiciais. Desde o advento das revoluções liberais, o Estado, em regra, abriu mão do poder de intervir na vida privada dos indivíduos, reservando tal atuação apenas para situações excepcionais, estritamente delimitadas e justificadas pelo ordenamento jurídico. É preocupante que princípios tão fundamentais ainda não estejam plenamente incorporados e que tal debate permaneça vigente no âmbito jurídico-acadêmico. É imprescindível refletir sobre um modelo de processo penal que se distancie das abordagens convencionais e se desassocie da lógica punitivista exacerbada, característica de regimes autoritários e marcados por práticas político-policiárias opressivas. É necessário um rito jurisdicional que não se confunda com a figura do soberano, um processo penal que não se encante com o sadismo e a disposição sobre vidas e corpos e que seja comprometido, em primeiro lugar, com a autodeterminação individual. Considerando as análises apresentadas, pode-se afirmar que a função contramajoritária do Poder Judiciário, especialmente no campo penal, deve atuar como um freio essencial frente aos excessos punitivos que, em certas ocasiões, são legitimados sob a justificativa do interesse coletivo. A efetivação dos direitos fundamentais, notadamente a presunção de inocência e o devido processo legal, não deve ser encarada como um obstáculo à justiça, mas sim como sua manifestação mais autêntica e legítima. A construção de uma cultura jurídica pautada no garantismo exige, portanto, um posicionamento crítico e ético por parte dos intérpretes da lei, cientes de que o Direito Penal, enquanto última ratio, deve ser mantido de forma excepcional, restrita e profundamente humanizada.É imprescindível, com a máxima urgência, repensar um processo penal que se mostre menos orientado pela lógica do poder e mais comprometido com a promoção da liberdade. A jurisdição penal não se destina à satisfação de desejos de vingança privada contra eventuais acusados, mas, antes, ao fiel cumprimento da ordem jurídica, assegurando a observância irrestrita de todos os direitos e garantias fundamentais que lhes são assegurados, dentro de uma concepção que eleva o estado de inocência à condição de valor absoluto, somente superável mediante provas inequívocas, incontestáveis e plenamente conclusivas. Conforme já se destacou, enquanto subsistir, o direito penal não pode se reduzir à função exclusiva de punir. Em consonância com uma leitura crítica da criminologia cotidiana e com as premissas do abolicionismo penal, ele deve ser compreendido, sobretudo, como um limite intransponível à violência institucional, representando a derradeira barreira civilizatória capaz de proteger o indivíduo da deterioração da justiça sob práticas estatais autoritárias. Torna-se, portanto, imprescindível fortalecer a dimensão ético-humanitária da jurisdição penal, evitando que esta se renda aos apelos de um populismo punitivista, que, embora sedutor, ameaça a consolidação de um Estado verdadeiramente democrático.
REFERÊNCIAS
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